Impossível falar em educação, neste momento da história, sem mencionar os impactos da pandemia para professores e estudantes. Em 2020, em função da pandemia de Covid-19, cerca de 1,6 bilhões de estudantes ficaram sem atividades escolares presenciais em todo o mundo, por extensões de tempo variadas, a depender dos contextos sanitários locais. Aqui no Brasil, avançamos para 2021 sem que muitas redes de ensino pudessem voltar a funcionar presencialmente.
A maior parte das escolas e redes de ensino do mundo estabeleceram, entretanto, alguma forma de ensino remoto, sobretudo utilizando tecnologias digitais de informação e comunicação (TDICs), a fim de mitigar os impactos negativos da pandemia. E, neste momento, embora seja difícil estimar os desdobramentos dessa empreitada, em suas múltiplas dimensões, alguns estudos (ver bibliografia) apontam conclusões preliminares:
As defasagens nas aprendizagens tradicionalmente mensuradas são praticamente certas; em alguns casos, são enormes;
Essa defasagem aumentou mais em matemática que em língua portuguesa;
Aqueles com maior vulnerabilidade social e econômica foram os mais prejudicados, aumentando o fosso da desigualdade educacional, no mundo todo, mas de forma destacadamente importante no Brasil;
Há perdas (confio que recuperáveis!) relacionadas ao desenvolvimento físico, afetivo e social dos estudantes, impossíveis de mensurar, sobretudo na primeira infância;
O trabalho remoto, para os professores, envolveu lidar com uma imensa quantidade de inovação, gerando altos níveis de estresse e ansiedade.
Essas conclusões negativas não devem, de forma alguma, nos levar a desvalorizar os esforços empreendidos no ensino remoto emergencial. Em primeiro lugar, porque, sem esses esforços, talvez tivéssemos um cenário ainda pior. Em segundo lugar, porque muitos dos estudos, neste momento, são aqueles que se baseiam na realização de avaliações padronizadas para fazer estimativas das defasagens. Tais avaliações, embora importantes, não cobrem uma série de aspectos da educação, que envolve também o acolhimento emocional, a proteção à infância, a orientação acerca da saúde etc..
Mas, de fato, o ensino remoto implementado às pressas não parece ter sido suficientemente efetivo (pelo menos, não em todos os contextos), por uma série de razões, que vão desde as desigualdades de infraestrutura e acesso às TDICs, passam pela inadequação da mera transposição das metodologias de ensino presenciais para o remoto, e incluem aspectos cognitivos, físicos e emocionais próprios das crianças e dos jovens, que os distinguem de adultos (teoricamente) aptos à gestão autônoma da vida estudantil na modalidade remota.
Aqui, dado nosso interesse específico, vale refletir um pouco sobre as possíveis razões pelas quais, em geral, a defasagem em matemática aumentou mais que em língua portuguesa. Um hipótese que arrisco é que a matemática, tal como praticada na escola, pouco encontra lugar fora da sala de aula, diferente do que ocorre com a língua materna, que permeia toda a vida cotidiana.
Não que o uso cotidiano da língua seja suficiente para o almejado desenvolvimento dos estudantes - como bem comprova a constatação de defasagem também em língua portuguesa. Mas, ao ler um livro, escrever um diário, ler notícias, argumentar oralmente etc., estão sendo praticadas importantes habilidades linguísticas, ainda que fora da escola. (Claro que nem todos praticam esses tipos de atividade... E isso exemplifica como fatores extra escolares incidem na triste realidade da desigualdade educacional: as crianças que vivem em um "ambiente letrado" levam vantagem, sobretudo agora que estão fora da escola.)
Então, ficam as questões: qual matemática se pratica fora da escola? E como a matemática de fora da escola se conecta com a matemática de dentro da escola?
Em um país com tantas desigualdades e com tanta diversidade como o nosso, é difícil responder a essas questões "no atacado". Mas, mesmo quando pensamos nos contextos mais favorecidos, nem sempre a matemática é parte do ambiente letrado propiciado às crianças por suas famílias.
O cotidiano é cheio de oportunidades para ajudar no desenvolvimento e no interesse matemático das crianças e jovens, se os responsáveis tiverem abertura e condições de compartilhar e de discutir ideias matemáticas com eles - o que não é equivalente a fiscalizar se estão fazendo a lição, diga-se de passagem. Mas, mesmo entre adultos com alta escolaridade, ouço muitos relatos de relações bem ruins com a matemática, forjadas por sentimentos negativos de medo e de fracasso vivenciados nos tempos de escola.
Obviamente, não estou responsabilizando as famílias - que têm enfrentando tantos desafios quanto os professores durante a pandemia - pelas defasagens no aprendizado da matemática. Mas essa situação evidencia que, enquanto sociedade, sairíamos todos ganhando se valorizássemos a matemática não apenas como uma disciplina escolar, mas como um bem cultural, que serve para resolver problemas reais e também para a nossa fruição intelectual.
Bibliografia:
Azevedo, J.P et al. Simulating the Potential Impacts of COVID-19 School Closures on Schooling and Learning Outcomes. Policy Research Working Paper 9284. World Bank Group. Education Global Practice June 2020.
CLEAR; FGV/EESP. Perda de aprendizado no Brasil durante a pandemia de covid-19 e o avanço da desigualdade educacional.
Engzell, P. et al. Learning inequality during the COVID-19 pandemic. SocArXiv, 29 Oct. 2020.
Instituto Unibanco. Estudos estimam impacto da pandemia na aprendizagem, 05/04/2021. Disponível em: <https://www.institutounibanco.org.br/conteudo/estudos-estimam-impacto-da-pandemia-na-aprendizagem/> Acesso em jun. 2021.
Oliveira, Vinícius. Levantamentos no Brasil e no exterior fazem um raio X das aulas remotas e mostram como estudantes, professores e famílias analisam o momento. Porvir, 14/07/2020. Disponível em: <https://porvir.org/pesquisas-mostram-os-impactos-da-pandemia-em-diferentes-areas-da-educacao/> Acesso em jun. 2021.
UNESCO. How many students are at risk of not returning to school? Advocacy paper 30 July 2020.
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