O vídeo publicado pela BBC News, no Facebook, conta, de forma bem resumida e didática, "a longa batalha do zero para se tornar um número". (Assistam! É bem legal!)
Segundo minha xará, Aline Tracanella, que estudou o assunto em sua dissertação de mestrado (resumo neste artigo), povos antigos como os egípcios, os maias e os romanos tinham um sistema de numeração eficaz para realizar as contagens necessárias à vida cotidiana, mas não concebiam o zero. Segundo a pesquisadora:
"Começamos por apontar que o homem sempre teve necessidade de contar e registrar a sua contagem, por isso, criou os números para facilitar esse processo, mas no que diz respeito ao número zero, foram grandes as dificuldades para considerá-lo um número e inseri-lo nas operações matemáticas. Justamente por não podermos “contar” a quantidade nula, o zero demorou séculos para ser aceito e compreendido pelas pessoas. A primeira ideia do significado do zero para os povos antigos era o nada e talvez esse seja um dos motivos da difícil compreensão de zero como representação de um número."
Essa dificuldade histórica alerta para a complexidade cognitiva da compreensão do zero como número.
Pense bem: para você, o zero é um número que goza do mesmo status que o 1, o 2, o 3... o mil? Ou ele é um caso à parte? Eu sei que você sabe que o zero é um número, até porque esse é um conhecimento social que foi inculcado na sua cabeça. Mas, para boa parte das pessoas, ainda que tenham estudado diversos tipos de número na escola, o modelo mental de número está fortemente associado aos números naturais, aqueles que usamos para contar. Então, a minha pergunta é: você entende o zero como um número natural?
Nos livros didáticos, quando esse conjunto é apresentado, designado pelo símbolo IN, o zero está lá:
IN = {0,1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13...}
E, no geral, é consenso incluí-lo aí. Mas isso não encerra o assunto. Em obras respeitadas no campo da Matemática, o zero não está listado no conjunto dos números naturais. O português Bento de Jesus Caraça, por exemplo, no livro "Conceitos Fundamentais da Matemática", de 1941, não inclui o zero entre os números chamados naturais. Ele pressupõe que o "natural" é que os números sejam utilizados primeiramente para contar, seja na história da humanidade, seja na história de cada indivíduo. E o zero não se presta à contagem.
Corroborando essa inadequação do zero para a contagem, os livros de análise matemática apressam-se em definir o conjunto IN*, que exclui o zero, porque ele é muito inconveniente para enumerar os elementos de uma sequência numérica, que é o papel que será atribuído aos números naturais nesse campo da Matemática.
Alguém poderia perguntar: então, porque incluir o zero no conjunto IN, se ele mais parece "um estranho no ninho"? É uma questão de conveniência na organização do corpo de conhecimento matemático. Ao incluir o zero no conjunto IN, garantimos a comodidade de poder expressar alguns resultados, como 5 - 5, sem ter de recorrer à ampliação desse conjunto. E é claro que essa é uma operação que corresponde a problemas triviais da vida cotidiana.
Pensando sobre o assunto, resolvi perguntar à minha filha, de 4 anos e 9 meses, se ela achava que o zero era um número:
- Clara, você acha que o zero é um número?
- Sim.
Depois de uma pequena pausa:
- Eu posso dizer que as coisas sumiram.
- E o que mais?
- Posso também dizer que tem zero coisas na nossa casa...
- É mesmo?
- É. Coisas assim... Mas só se a casa estiver vazia, é claro.
Óbvio que eu não perguntei se ela achava que o zero era um número natural... Ela não conhece essa classificação. Mas, neste momento, número, para ela, está quase que exclusivamente associado à noção de quantidade, resultado de uma contagem.
Dito isso, o que mais me chama atenção na resposta da Clara é que ela não começa ilustrando uma situação em que há "zero coisas". Ela imagina que havia coisas que sumiram. De certa forma, ela parece ter feito o mesmo que os matemáticos: incluiu o zero na categoria dos números para poder representar uma transformação sobre algum outro número, que representava uma quantidade inicial (algo como 5 - 5 = 0). Se minha interpretação estiver correta, então isso significa que ela entende que o resultado de operações sobre números devem resultar em números.
Depois que o zero é justificado assim como sendo um número, então ela passa a construir o enunciado um tanto artificial "tem zero coisas na nossa casa", em vez de dizer que "a casa está vazia", para mostrar que é possível aplicar a mesma construção gramatical que se dá com qualquer outro número.
Então, fechando a pergunta que abre este post: o zero é um número natural? Sim, por convenção, mas se distingue de todos os demais naquilo que eles têm de mais fundamental, que é sua adequação para a atividade de contar. Conceber o zero como um número natural parece exigir uma camada adicional de abstração, antecipando a conveniência de poder representar uma ampla gama de transformações sobre quantidades na realidade concreta.