Um dia desses, nas redes sociais, vi um post que é um excerto de uma crônica do Rubem Alves:
Apesar da beleza e da profundidade do ensinamento contido aí, poderia ter passado batido. (Afinal, são tantas as mensagens que pretendem nos provocar epifanias nos dias atuais...) Mas não passou batido, pois, justamente nesse dia, eu havia ficado sabendo do falecimento do professor Ubiratan D'Ambrósio (1932 - 2021), um dos maiores nomes da Educação Matemática e da História da Matemática no Brasil e no mundo. A associação foi imediata.
A obra do professor Ubiratan - em cujo centro está a etnomatemática, sua herança para o mundo - é um exemplo concreto e importante desse tipo de humildade a que se refere Rubens Alves: o professor Ubiratan percebeu - com a cabeça e com o coração - que "o outro vê mundos que nós não vemos".
Nas próprias palavras do professor Ubiratan:
"A história que nós fazemos, que se faz no mundo ocidental, é a história do mundo ocidental, olhando para os outros países por fora. O que o ocidental quer ver no outro pais... O que seria a história de vida deles? Contada por eles, explica por eles. Ai eu comecei a me interessar, a entender: olha, essa história também inclui a matemática. A matemática esta ligadinha com a história. Todas as etapas de evolução da espécie humana são etapas onde você reconhece fatos matemáticos, avanços matemáticos. Então, eu faço um estudo disso, procurando entender, ao longa da história, como que os locais e aquela gente via o seu fazer matemático. Isto é o que passou a se chamar Etnomatemática. Aí nasceu a ideia da Etnomatemática."
A etnomatemática pode ser entendida como uma área de pesquisa, sendo considerada frequentemente como uma subárea da História da Matemática e da Educação Matemática. Os estudos etnomatemáticos se debruçam sobre a matemática praticada por diferentes grupos culturais: determinadas comunidades urbanas, rurais, classes profissionais, sociedades indígenas etc. Com isso, a etnomatemática revela matemáticas bem diferentes da matemática acadêmica vigente no mundo atual, essa que costumamos grafar "Matemática", com inicial maiúscula.
Se você tem uma visão um tanto platônica do que é a matemática, como algo que existe independentemente dos seres humanos, num plano ideal, talvez tenha dificuldade de entender a perspectiva da etnomatemática. (Eu já tive essa dificuldade...) Penso que isso acontece, em parte, porque as palavras admitem múltiplas camadas de significado. Alguém de inclinações platônicas possivelmente associa a palavra "matemática" a um conjunto de verdades imutáveis, que é igual para todos, para qualquer que seja o grupo étnico ou social. Por exemplo, a soma do quadrado dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa de um triângulo retângulo, e isso não mudará jamais, quer estejamos numa aldeia indígena isolada em uma reserva brasileira, quer estejamos na Universidade de São Paulo, quer estejamos na Europa ou na África, do presente, do passado ou do futuro.
Mas o que a etnomatemática ajuda a enxergar é que o triângulo retângulo, a hipotenusa, os catetos e esse teorema em particular... não são objetos de atenção de todo e qualquer grupo cultural, embora o sejam para aqueles que têm uma forte herança europeia/grega. Outros grupos culturais, de diferentes épocas e localidades, podem nem formular esses conceitos, porque são outros os conceitos que têm relevância nos seus contextos. A linguagem, a forma de argumentar, de ensinar e de aprender matemática também podem variar imensamente. Mas, em qualquer cultura, haverá matemática, porque ela é inerente à vida em sociedade e ao modo como a mente humana formula e resolve certos tipos de problemas.
A título de exemplo, a própria matemática escolar (percebida e vivenciada por crianças e professores da educação básica), embora tributária da Matemática, não se confunde com ela. Os matemáticos profissionais passam muito tempo envolvidos com demonstrações, por exemplo. O grupo Bourbaki diz que "a partir dos gregos, quem diz 'matemática', diz 'demonstração'". Já os estudantes dos anos iniciais do Ensino Fundamental, por exemplo, passam bastante tempo aprendendo algoritmos para as quatro operações. Parafraseando o grupo Bourbaki, para os anos iniciais, quem diz "matemática" diz "cálculo com números naturais".
Também a título de exemplo, podemos pensar que, na Europa Medieval, o Cálculo Diferencial não era menos verdadeiro do que é hoje... Porém, ele não havia sido desenvolvido! Então, a questão aqui não é sobre a verdade epistêmica dos enunciados matemáticos, mas sobre a matemática como prática e experiência cultural de diferentes grupos humanos, de diferentes épocas e locais.
O projeto Matemática pra quem? não tem a pretensão de alinhamento com nenhuma vertente de pensamento específica, ao contrário, é um exercício de liberdade de pensamento. Mas é impossível ignorar que algo da etnomatemática subjaz à pergunta que constitui seu título: um reconhecimento de que a matemática é para todos, mas pode ser diferente para cada um.
Um salve para o professor Ubiratan!
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