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Foto do escritorAline Matheus

O papel do contrato didático na resolução de problemas matemáticos

Um dos assuntos que mais preocupa os professores que ensinam matemática é a eventual dificuldade dos estudantes em resolver problemas. A pesquisa em Educação Matemática vem sinalizando que, frequentemente, a dificuldade não está na aprendizagem matemática em si ou na capacidade geral de raciocínio ou de leitura, mas decorre do contrato didático estabelecido entre professores e alunos.

A ideia de contrato didático começou a ser intensamente estudada dentro da Educação Matemática na década de 1970, sobretudo com a contribuição de Guy Brousseau. Para compreender essa noção, é preciso, primeiro, distinguir contrato didático e contrato pedagógico. Este último diz respeito às relações entre professores e alunos, arbitrando sobre aspectos mais sociais que cognitivos: as regras de convivência, o que pode ou não ser feito em sala de aula, as sanções etc. A noção de contrato didático, por outro lado, diz respeito à relação que professores e alunos estabelecem por meio dos e em relação aos conhecimentos em jogo, quase sempre de forma implícita.

Segundo o próprio Brousseau (1980, p. 127 apud D’Amore, 2007, p. 101):


“Em uma situação de ensino, preparada e realizada por um professor, o aluno normalmente tem como tarefa resolver o problema (matemático) que lhe é apresentado, mas o acesso a essa tarefa é feito por meio da interpretação das questões colocadas, das informações fornecidas, das obrigações impostas que são constantes no modo de ensinar do professor. Esses hábitos (específicos) do professor esperados pelos alunos e os comportamentos do aluno esperados pelo docente constituem o contrato didático.”


A noção de contrato didático foi utilizada em uma enorme quantidade de estudos, ajudando a interpretar o comportamento dos estudantes frente a tarefas matemáticas. Um dos mais célebres desses estudos aconteceu na década de 1980, na França, conduzido por Stela Baruk, e acabou se transformando no livro “A idade do capitão”. Esse estudo pautou-se na proposição do seguinte problema para 97 crianças de nove/dez anos de idade:


"Em um barco há 26 ovelhas e 10 cabras. Quantos anos tem o capitão?"


Por mais absurdo que seja o problema, o fato é que a maior parte das crianças (76 delas) deu uma resposta numérica a ele, usando os dados disponíveis: 26 e 10. Como explicar esse comportamento perturbador? As crianças acham mesmo que há relação entre a quantidade de ovelhas, a quantidade de cabras e a idade do capitão? Não, mas elas suspendem seu juízo e agem de acordo com o contrato didático: “a professora nunca dá problemas sem solução ou impossíveis e, além disso, ela sempre espera que os alunos resolvam os problemas fazendo operações com os números que aparecem no enunciado”.

Então, eles apenas tentam adivinhar qual é a resposta desejada pela professora.

Isso nos mostra ao menos duas coisas importantes: 1) o contrato didático é uma força poderosa em sala de aula, por vezes mais forte que a lógica e que as convicções pessoais e 2) o contrato didático só é plenamente percebido quando há uma ruptura, como no caso do problema da idade do capitão. Essas duas observações implicam que o contrato didático age de forma importante, mas bem mais obscura, nas situações mais usuais, em que não há um problema absurdo em jogo.

Por exemplo, considere o seguinte problema:


“Vinte estudantes vão fazer uma excursão de um dia de São Paulo até Santos, cidades que distam 55 km entre si. O aluguel do ônibus custa R$ 200,00 por dia mais R$ 50,00 por quilômetro rodado. Se dividirem os custos do aluguel do ônibus igualmente, quanto cada estudante deve pagar?”


O erro comum entre os estudantes que resolvem esse problema é não computarem o custo da volta, multiplicando 50 por 55, em vez de multiplicar 50 por 110. Talvez você atribua isso à falta de atenção ou a um mero esquecimento, mas, estudando de forma aprofundada problemas similares, os pesquisadores concluíram que os estudantes, com frequência, não se sentem autorizados a usar uma informação que não está explicitamente dada no enunciado, precisamente porque o contrato didático não envolve tal cláusula, uma vez que lhes são propostos (quase que) exclusivamente problemas cujas informações relevantes estão sempre explícitas (D’Amore, 2007, p. 111).

Os dois exemplos expostos mostram a importância de variar as características dos problemas que são propostos aos alunos: problemas com dados excessivos, problemas com dados implícitos, problemas que não podem ser resolvidos numericamente, problemas com falta de dados e até mesmo problemas impossíveis.

Porém, para além das características dos problemas propostos, há outros elementos no contrato didático, tais como: a organização temporal das instruções e problemas, as expectativas, os comportamentos e os sentimentos de professores e alunos. Esses elementos podem gerar outros tipos de efeito sobre o desempenho dos estudantes na resolução de problemas.

Por exemplo, se os problemas propostos são sempre restritos ao tópico da instrução imediatamente anterior, os estudantes podem “adivinhar” qual operação usar (“a que a professora acabou de explicar!”), mas dificilmente vão transpor seus conhecimentos para uma genuína atividade de resolução de problemas, em que a escolha não evidente dos recursos matemáticos a serem utilizados é um aspecto central.

Outro exemplo importante é o que Brousseau (1996) chamou de efeito topázio, fazendo alusão a uma cena da peça Topázio, de Marcel Pagnol, em que um professor faz um ditado a um aluno e vai lhe dando sugestões, progressivamente mais e mais evidentes, da grafia das palavras, de modo a evitar que esse aluno erre. No efeito topázio, o professor assume a tarefa pelo aluno quando este encontra alguma dificuldade, induzindo-o à resposta desejada.

É claro que o efeito topázio acaba por boicotar o desenvolvimento da capacidade dos estudantes de resolver problemas matemáticos, tanto porque inviabiliza o exercício cognitivo necessário a esse tipo de atividade – se o professor faz pelo aluno, este não aprende – como porque instaura um contrato didático que impede o enfrentamento das dificuldades e das incertezas, dimensão socioemocional essencial da atividade de resolução de problemas. O comportamento do professor, no efeito topázio, costuma ser um reflexo não intencional do seu próprio desconforto emocional com relação ao erro, à incerteza e à possibilidade do “fracasso” de seus alunos. Essa postura do professor é “aprendida” pelos alunos por meio do contrato didático, ou seja, implicitamente.

Como enfrentar as dificuldades discutidas aqui? Por sua própria natureza, o contrato didático não pode ser completamente explicitado e analisado de antemão. Um primeiro passo, certamente, é a tomada de consciência da complexidade da relação entre professores, alunos e conhecimento matemático. Depois, é necessário manter uma postura reflexiva diante das inevitáveis quebras de contrato didático, usando-as como oportunidade de aperfeiçoamento constante das práticas de ensino. Nesse processo, a interlocução e o apoio dos pares e da equipe de coordenação podem ser grandes aliados.


Referências e bibliografia:

ALMEIDA, F.E.L; LIMA, A.P.A.B. Os efeitos de contrato didático na sala de aula de matemática in: XIII CIAEM-IACME. Recife, Brasil, 2011.

BROUSSEAU, G. Didáctica das Matemáticas /Brun, J...[et al]; Direção: Jean Brun. Trad: Maria José Figueredo, Lisboa: Instituto Piaget, 1996.

D’AMORE, B. Elementos de didática da matemática. Bruno D’Amore; [tradução Maria Cristina Bonomi] São Paulo: Editora Livraria da Física, 2007.

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