O título deste post é, claro, uma brincadeira com a frase bíblica: "Crescei e multiplicai-vos". Fato é, entretanto, que as ideias de multiplicação e de crescimento aparecem frequentemente juntas.
O dicionário Michaelis on-line traz, entre as acepções para o vocábulo multiplicar, as seguintes:
Meu pai sempre usava alguma variação da seguinte fórmula: "Esse sujeito é um avarento... Não quer saber de dividir, só de somar e multiplicar!" (Já ouviram essa?!)
No campo da formação docente continuada, o termo "multiplicador" é usado para se referir aos profissionais que vão difundir uma certa formação em uma rede de ensino, levando o conhecimento para mais professores. A Escola de Formação da rede de ensino do Estado de São Paulo tem, por exemplo, um programa de formação docente chamado Multiplica São Paulo.
E por aí vai...
No início da escolarização, as vivências matemáticas dos estudantes explicam e reforçam essas ideias circulantes no mundo social. Afinal, quando resolvem problemas envolvendo a multiplicação de dois números naturais, o produto é sempre maior que os fatores.
Uma das ideias mais fundamentais associadas à operação de multiplicação é a de adição de parcelas repetidas, como se vê neste problema convencional:
Dona Benta gasta 5 ovos para fazer 1 bolo. Ela quer fazer 8 bolos. Quantos ovos ela vai gastar?
Para fazer esses oito bolos, a Dona Benta vai ter de gastar 8 x 5 ovos, o que, independentemente do resultado, é, obviamente, mais do que ela gastaria para fazer um único bolo!
Depois, ainda é fortemente trabalhada a configuração retangular associada à multiplicação. Então, por exemplo, temos a representação de quatro fileiras, cada uma contendo 04 brinquedos:
É claro que, no retângulo todo, vai haver mais brinquedos do que numa única linha ou coluna!
Sendo exposto, na escola e fora dela, a situações multiplicativas em que o produto é sempre maior que os fatores, o estudante frequentemente constrói um modelo intuitivo sobre a multiplicação como uma operação "que faz crescer". Isso quando não são os próprios professores que, na melhor das intenções, sistematizam esse modelo, dizendo aos estudantes que "adição e multiplicação são operações que aumentam; subtração e divisão são operações que diminuem".
O problema disso tudo é que chegará o dia em que o estudante precisará multiplicar, por exemplo, 7 por 0,5 e - surpresa! - o produto será menor que o fator 7. Vale salientar que, independentemente de conseguir (ou não) realizar esse cálculo com o procedimento ensinado pelo professor, o estudante que construiu um modelo intuitivo equivocado enfrentará um conflito cognitivo, que poderá se manifestar na dificuldade de resolver problemas envolvendo o significado dessa operação.
Essa situação nos coloca ao menos duas questões:
É possível evitar a construção desse modelo intuitivo equivocado por parte dos estudantes?
Como ampliar tal modelo intuitivo, uma vez que esteja estabelecido?
Bruno D'Amore, em seu livro Elementos de Didática da Matemática, nos alerta para a
"necessidade didática de não tornar estável aquela imagem [modelo intuitivo equivocado], a fim de poder ampliá-la sucessivamente, na tentativa de construir um modelo do conceito de multiplicação de modo ótimo, no sentido que contemple as ampliações sucessivas para números não naturais."
Para levar essa orientação a cabo, é preciso, em primeiro lugar, não veicular informações errôneas. Então, ainda que isso, no curtíssimo prazo, pareça ajudar o estudante a resolver problemas nos anos iniciais do Ensino Fundamental, não se deve usar a dica de que "a multiplicação faz aumentar".
Em segundo lugar, é preciso diversificar - ao longo do tempo - os tipos de problema envolvendo diversas ideias do campo conceitual multiplicativo. Em vez de trabalhar exaustivamente com variações do problema da Dona Benta, apenas complexificando tecnicamente os cálculos e mudando contextos, é preciso trabalhar muitas outras estruturas, tais como:
Para dançar quadrilha na festa da vizinhança, apareceram seis meninas e três meninos. Quantas são as possibilidades de pares que poderiam ser formados?
Joana e sua irmãzinha mais nova inventaram um jogo com botões. No início, Joana, que é mais velha, usa a seguinte regra para distribuir os botões: dá, a cada vez, 3 para si mesma e 2 para sua irmã. Depois de algumas rodadas distribuindo os botões, Joana está com 12. Com quantos botões estará a sua irmãzinha?
No problema da quadrilha, não se trata da variação proporcional de duas grandezas (bolos e ovos, carros e rodas, coelhos e orelhas...), mas da ideia de combinatória. O produto representará pares, diferentemente dos fatores, que representam crianças. Então, embora o produto continue sendo numericamente maior que os fatores, a ideia de uma grandeza que cresce não tem sentido nessa situação.
No problema dos botões, a relação de proporcionalidade dada é do tipo "muitos para muitos" (3 para 2) e não "um para muitos", dinamizando as possíveis representações da situação para além da configuração retangular. *
Quanto maior a variação da estrutura dos problemas e, consequentemente, das representações de que se pode lançar mão, maior é a probabilidade de conseguirmos evitar a consolidação precoce de um modelo intuitivo demasiado estrito.
Quanto ao segundo questionamento, tanto neste como em outros casos similares, é preciso confrontar clara e explicitamente os modelos intuitivos dos estudantes que estejam equivocados ou sejam demasiado estritos. Isso implica, em primeiro lugar, propor atividades que possibilitem eles que emerjam, sejam problematizados, discutidos e superados.
Até a próxima!
(*) Embora esse problema possa ser resolvido usando também uma divisão, é perfeitamente possível que estudantes os resolvam usando outros elementos - esquemas, desenhos etc - no campo multiplicativo, sem recorrer a essa operação.
Referências e bibliografia:
D'Amore, B. Elementos de Didática da Matemática. Trad. Maria Cristina Bonomi. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2007.
Magina, S. M. P., Santos, A. dos ., & Merlini, V. L.. O raciocínio de estudantes do Ensino Fundamental na resolução de situações das estruturas multiplicativas. Ciência & Educação (Bauru), 20 (2), 517–533, 2014. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1516-73132014000200016.
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