CĂrculo e circunferĂȘncia: grandes ideias!
- Aline Matheus
- 28 de set. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 6 de mai. de 2024
O cĂrculo Ă© bem mais que uma figura geomĂ©trica; ele Ă© uma grande ideia matemĂĄtica, que se relaciona a mĂșltiplas outras grandes ideias, de valor duradouro e abrangente: equidade, centralidade, unidade, simetria, harmonia... Ao propor o estudo do cĂrculo (e da sua "irmĂŁ" circunferĂȘncia) a partir da geometria, quais conexĂ”es podemos fazer para ajudar os estudantes a desenvolverem uma compreensĂŁo profunda sobre essas ideias?
Estou reestudando um livro maravilhoso para professores: Planejamento para a CompreensĂŁo, escrito por Grant Wiggins e Jay McTighe, publicado em LĂngua Portuguesa pela Editora Penso, em 2019, com revisĂŁo tĂ©cnica da querida e competentĂssima Barbara Born. Dentre as muitas contribuiçÔes importantes que o livro dĂĄ para quem quer fazer do planejamento uma ferramenta de trabalho poderosa, destaco aqui a importĂąncia de planejar o ensino tendo em vista as grandes ideias da disciplina.
O que isso quer dizer? Para os autores, quando pretendemos que os estudantes desenvolvam compreensĂŁo (e sempre pretendemos, nĂŁo Ă©?), precisamos especificar o que isto quer dizer... Compreender algo envolve fazer inferĂȘncias sobre grandes ideias, isto Ă©, sobre ideias transferĂveis e Ășteis, que tĂȘm valor duradouro e vĂŁo alĂ©m de um tĂłpico especĂfico. Uma grande ideia pode ser um conceito (a ideia de justiça, por exemplo), uma prĂĄtica (argumentar em favor de uma conclusĂŁo, por exemplo), uma estratĂ©gia (começar a resolver um problema de trĂĄs para frente, por exemplo), um princĂpio (correlação estatĂstica nĂŁo Ă© causalidade, por exemplo), um debate permanente (como promover justiça social? etc.). Para chegar Ă s grandes ideias, Ă© preciso se utilizar de fatos, mas Ă© tambĂ©m preciso experimentar, discutir, argumentar, concluir... E uma das mais perigosas tentaçÔes para o professor ou para a professora Ă© transmitir diretamente uma grande ideia como um fato dado. Segundo Dewey (1916), citado pelos mesmos autores:
"[...] na medida em que o que Ă© comunicado nĂŁo pode ser organizado dentro da experiĂȘncia existente do aprendiz, isso se transforma em meras palavras: ou seja, [...] carece de significado. EntĂŁo isso opera para provocar reaçÔes mecĂąnicas. [...]
O aluno aprende os sĂmbolos sem a chave para o seu significado. Ele adquire um corpo tĂ©cnico de informaçÔes sem a habilidade de fazer suas conexĂ”es com os objetos e operaçÔes com as quais estĂĄ familiarizado - com frequĂȘncia ele adquire simplesmente um vocabulĂĄrio peculiar [...] Saber [apenas] as definiçÔes, regras, fĂłrmulas, etc., Ă© como saber o nome das partes de uma mĂĄquina sem saber o que elas fazem."
Voltemos ao cĂrculo! O cĂrculo pode ser definido como uma regiĂŁo do plano delimitada por uma circunferĂȘncia, que Ă© o lugar geomĂ©trico dos pontos que equidistam de um centro dado. Mas, dito desse modo... e daĂ? Qual Ă© a grande ideia?
Certamente, o conceito de lugar geomĂ©trico Ă© uma grande ideia e compreendĂȘ-la envolve viver a experiĂȘncia de procurar pelo conjunto de pontos do plano (ou do espaço) que tĂȘm uma certa propriedade... NĂŁo Ă© uma coisa surpreendente e fantĂĄstica que essa busca, frequentemente, faça emergir uma forma geomĂ©trica?
Por exemplo, vocĂȘ propĂ”e um jogo para a sua turma de 7Âș ano, em que o tabuleiro Ă© um mapa, onde estĂŁo representadas ilhas, navios e outras coisas fantĂĄsticas de uma histĂłria lĂșdica de piratas. Entre as dicas sobre a localização de um tesouro, consta que ele estĂĄ enterrado em um ponto que estĂĄ a exatamente a sete centĂmetros de distĂąncia do coqueiro do papagaio no mapa... EntĂŁo os alunos começam a tentar marcar os pontos que estĂŁo a centĂmetros do coqueiro do papagaio. Em geral, usam a rĂ©gua e vĂŁo fazendo marcaçÔes pontuais em direçÔes especĂficas. VocĂȘ questiona: "nĂŁo haveria outros pontos? em outras direçÔes? Por que nĂŁo aqui, por exemplo?" Em um momento propĂcio, vocĂȘ os desafia a usar o compasso, que eles jĂĄ conhecem um pouquinho, para tentar achar "todos os pontos" em que o tesouro poderia estar enterrado. DaĂ alguĂ©m tem um insight, que vocĂȘ ajuda a socializar: "olha, quando traço com o compasso, qualquer ponto na linha desenhada estĂĄ a sete centĂmetros do coqueiro do papagaio!" E voilĂĄ: "o tesouro estĂĄ em algum lugar nessa circunferĂȘncia!", vocĂȘ começa a introduzir a nomenclatura. Mais adiante, em um momento de sistematização, vocĂȘ introduz o termo "lugar geomĂ©trico": "dizemos que a circunferĂȘncia Ă© o lugar geomĂ©trico dos pontos que estĂŁo a mesma distĂąncia de um ponto especĂfico, que Ă© chamado de centro."
Essa experiĂȘncia, bem conduzida, Ă© incomparĂĄvel com receber a definição de circunferĂȘncia e de lugar geomĂ©trico como algo pronto, logo de partida. NĂŁo que essa experiĂȘncia baste - ainda serĂĄ preciso que haja sistematização dos conhecimentos que emergem da experiĂȘncia, exploração de outros contextos nos quais essas mesmas ideias apareçam... - mas as grandes ideias precisam ser desenvolvidas de forma ativa pelo prĂłprio sujeito que aprende e esse Ă© um exemplo de atividade que pode ser planejada para apoiar esse propĂłsito.
Outra grande ideia no caso do cĂrculo e da circunferĂȘncia Ă© a de equidistĂąncia. O fato de os pontos de uma circunferĂȘncia estarem equidistantes de um ponto dado confere a essa forma geomĂ©trica uma sĂ©rie de atributos: por exemplo, uma infinidade de eixos de simetria; a possibilidade de rolar de forma contĂnua e suave, uma vez que ela pode ser sempre perfeitamente ajustada ao espaço contido entre duas retas paralelas, em qualquer posição que ocupe. (AliĂĄs, vocĂȘ sabe que outras formas geomĂ©tricas tambĂ©m podem rolar, mesmo sendo bem, mas bemmmmm diferentes mesmo de uma roda circular? Confere neste post da sĂ©rie "MatemĂĄtica para Curiosos".)
Num nĂvel mais abrangente, a equidistĂąncia pode ser relacionada Ă ideia de equidade. Os pontos de uma circunferĂȘncia nĂŁo sĂŁo iguais - ocupam diferentes lugares do plano - mas tĂȘm uma equivalĂȘncia com relação ao quanto distam de um mesmo ponto de referĂȘncia. Claramente essa ideia Ă© transferĂvel para a noção social de equidade: ser igual em direitos, apesar das diferenças. Uma ilustração super didĂĄtica dessa associação entre circunferĂȘncia e equidade estĂĄ presente nas chamadas lendas arturianas, de origem britĂąnica, explorada em um dos nossos vĂdeos da sĂ©rie "MatemĂĄtica para curiosos":
Outra grande ideia associada Ă circunferĂȘncia e ao cĂrculo Ă© a de centro. Ter um centro, ser centrado, convergir para um centro, ter um ponto de equilĂbrio, um ponto de referĂȘncia comum a todos, ser coeso, ter unidade... NĂŁo Ă© a toa que as mandalas - padrĂ”es grĂĄficos expressivos que exploram fundamentalmente as simetrias do cĂrculo - sĂŁo frequentemente associadas ao bem estar psicolĂłgico. Um exemplo fantĂĄstico dessa associação estĂĄ relacionado ao trabalho terapĂȘutico conduzido pela renomada mĂ©dica psiquiatra brasileira Nise da Silveira (1905 - 1999), na Casa das Palmeiras. Vale a pena conhecer!
As ideias de lugar geomĂ©trico, equidistĂąncia e centro nĂŁo sĂŁo as Ășnicas grandes ideias que podem ser exploradas dentro do estudo do cĂrculo e da circunferĂȘncia... Tampouco os exemplos que dei aqui sĂŁo os Ășnicos ou os melhores. Certamente, vocĂȘ, colega professor ou professora de matemĂĄtica, pode elencar outras grandes ideias associadas ao assunto, acessĂveis para o ano escolar e significativas para o contexto em que leciona. Igualmente, pode pesquisar, selecionar e elaborar exemplos que tenham conexĂŁo com esse contexto. A mensagem importante aqui Ă© que, ao planejar experiĂȘncias de aprendizagem mirando grandes ideias, podemos criar um campo fĂ©rtil para que os estudantes elaborem compreensĂ”es que vĂŁo muito alĂ©m de um conjunto de informaçÔes factuais desconexas.
ReferĂȘncia bibliogrĂĄfica: Wiggins, G.; McTighe, J. Planejamento para a compreensĂŁo: alinhando currĂculo, avaliação e ensino por meio do planejamento reverso. Trad. Sandra Maria Mallmann da Rosa. RevisĂŁo tĂ©cnica: BĂĄrbara Barbosa Born, AndrĂ©a Schmitz Boccia. 2ÂȘ ed. (ampliada). Porto Alegre: Penso, 2019.