top of page
  • Foto do escritorAline Matheus

O teorema das quatro cores e nossa confiança nos computadores

Atualizado: 6 de mai.

Em 2021 completou-se um quarto de século de voto eletrônico no Brasil. Em 1996, um terço dos eleitores votou utilizando a urna eletrônica; em 1998, essa fração dobrou e, em 2000, finalmente, todo o eleitorado votou eletronicamente. O fato foi muito celebrado por permitir superar dois problemas do voto em papel: a facilidade de fraude e a morosidade do processo de apuração. Com o novo sistema, o Brasil tornou-se uma referência mundial relativamente à segurança e à agilidade nos processos eleitorais. Assim, não deixa de ser irônico que o argumento para recender a discussão sobre voto eletrônico versus voto impresso, em 2022, seja de que apenas o voto impresso poderia ser auditado e, portanto, apenas ele poderia garantir segurança do processo eleitoral. Isso em um momento em que o digital consolida-se em muitos âmbitos da nossa vida cotidiana (vide, por exemplo, a rapidez com que aderimos ao PIX para as transações bancárias e como os cheques ficam cada vez mais obsoletos...).

A verdade é que somos todos usuários de tecnologias que nem sempre compreendemos e cuja correção e validade, portanto, não podemos checar pessoalmente. Cada vez mais sofisticadas, as tecnologias são profundamente compreendidas apenas por um punhado de especialistas. Então, para além do uso político da discussão sobre a urna eletrônica, teço aqui a hipótese de que a discussão mobiliza uma "desconfiança básica" que as pessoas têm acerca das tecnologias digitais. Essa desconfiança básica permeia diferentes contextos e também está presente na história da Matemática. Especialmente, todo o imbróglio sobre as urnas eletrônicas me lembrou da história sobre o Teorema das Quatro Cores, que relato a seguir.

Em 1852, um jovem inglês chamado Francis Guthrie, percebeu que quatro cores bastavam para colorir um mapa dos condados da Inglaterra (sem que regiões adjacentes tivessem mesma cor). Intrigado, perguntou ao seu irmão mais velho, Frederick, se o mesmo aconteceria com qualquer mapa. Frederick, incapaz de responder à questão, propôs o problema a um de seus professores, o matemático Augustus de Morgan.

A partir daí, o problema, de formulação simples, começou a ganhar notoriedade entre os matemáticos. Ninguém conseguia exibir um mapa suficientemente complicado a ponto de exigir cinco cores, mas também ninguém conseguia demonstrar que bastavam quatro para qualquer mapa.


Quatro cores na coloração de um mapa político complexo


Apenas em 1976, dois matemáticos da Universidade de Illinois, Haken e Appel, foram capazes de demonstrar a conjectura, que, assim, foi elevada à categoria de teorema.

A demonstração do Teorema das Quatro Cores foi notícia em todo o mundo. Não apenas por se tratar de um problema tão antigo e famoso, mas também pela polêmica que se criou em torno do método da demonstração. O caso é que ela só foi possível graças à utilização de um computador que teve de trabalhar mais de 1200 horas para efetuar todos os cálculos necessários.

À época, os matemáticos e filósofos mais puristas questionaram a validade dessa demonstração. Argumentaram que a ideia de demonstração matemática, absoluta e definitiva, ficaria enfraquecida nesse caso, pois ela comportaria, aqui, uma questão de fé: seria preciso acreditar na infalibilidade dos cálculos computacionais. Essa infalibilidade não poderia ser provada e seria praticamente impossível que alguém conferisse a imensa quantidade de cálculos que o computador teve de fazer para demonstrar o teorema.

Como vemos, não é uma questão trivial, do ponto de vista epistêmico. A "desconfiança básica" a que me referi anteriormente, neste caso, tem a ver com a questão da validação dos processos que já não mais são abarcáveis pelo tempo e pela capacidade humana.

E aí? Podemos confiar nos computadores? Do meu ponto de vista, talvez seja uma pergunta deslocada. Os computadores, softwares, aplicativos e toda a parafernália digital que nos cerca são ferramentas criadas por pessoas. O ponto talvez seja: em que medida confiamos uns nos outros? Não na infalibilidade do outro, mas na sua boa fé, no seu conhecimento.

Eu não consigo estimar a confiabilidade do programa que permitiu demonstrar o Teorema das Quatro Cores, mas os matemáticos e especialistas da ciência da computação possivelmente podem fazê-lo. Escolher confiar neles não é considerar que eles sejam infalíveis, mas, sim, que eles se valeram do melhor conhecimento disponível para, com boa fé, ampliar o conhecimento matemático. E, principalmente, escolher confiar neles não dispensa ficar alerta a novas evidências que possam contradizer suas conclusões.

Não vou aprofundar a discussão das implicações epistêmicas disso para a Matemática, pois isso ultrapassaria minhas competências - apenas me arrisco à livre reflexão por aqui. Mas queria volta à questão da confiança nas tecnologias digitais no que diz respeito à vida em sociedade.

Parece-me que, mais que nunca, a complexidade do mundo atual exige que deleguemos a outras pessoas o controle de muitos aspectos importantes das nossa vida. Da produção de alimentos à medicina, passando pela urna eletrônica e pelo Teorema das Quatro Cores... Nesse contexto, confiar cegamente nos nossos semelhantes não parece uma atitude prudente. Porém, tampouco parece prudente e razoável duvidar radicalmente de tudo e de todos, esfacelando os elos de confiança que sustentam nossa vida em sociedade. (A menos que você acredite que vive no Show de Truman...)


Referências:





74 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Commentaires


Post: Blog2_Post
bottom of page